quarta-feira, 7 de março de 2012

"Ladrões de bicicletas"

Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo

Lamento do fundo do meu coração a morte da ciclista Juliana Dias, vítima da mal politizada e ainda não discutida barbárie do trânsito brasileiro; ao mesmo tempo em que faço uma homenagem ao grande cineasta e ator Vittorio De Sica usando o título do seu célebre filme, realizado em 1948, que retrata uma Itália pós-guerra, vivendo um duro cotidiano de reconstrução de sua sociedade, de sua vida política e do seu sistema econômico, para escrever estas notas.

Para quem não sabe, lembra ou viu, o filme gira em torno de um desempregado que consegue trabalho como colador de cartazes, com a condição - por causa da mobilidade necessária ao serviço - de possuir uma bicicleta! Parece familiar, não é verdade? Para tanto, sua mulher empenha a roupa de cama da casa para obter a bicicleta, cujas frágeis rodas e a força do seu dono e piloto são as asas da esperança do herói do filme para a competição por um emprego na rua.

A história é contada no que se convencionou chamar de neorrealismo, porque não era realizado num estúdio, não tinha o lirismo falso e fácil de Hollywood nem lançava mão de atores famosos. Usando uma cinematografia modesta, quase humilde, que inspirou o cinema novo de Glauber Rocha, Carlos Diegues, Nelson Pereira do Santos e Joaquim Pedro de Andrade, entre outros, De Sica conta como uma simples bicicleta - esse objeto de esporte e lazer - muda de significado e passa a ser um instrumento crítico de sobrevivência, de esperança e de recuperação da honra pessoal. Essa honra cuja marca, para quem é obrigado a trabalhar duro - como, aliás, é o meu caso -, tem como pano de fundo a fragilidade e como centro o temor do desequilíbrio.

Exatamente como ocorre quando andamos de bicicleta sem usar as duas mãos e podemos cair ou ser atropelados, pois toda bicicleta é um fator de risco. Seja pelo requerido equilíbrio, seja pela presença dos veículos motorizados, seja pela desesperada busca do ladrão, como ocorre no filme. Eis uma belíssima metáfora da vida na qual todos somos meros ladrões ou perdedores de bicicletas e nelas passamos desiquilibradamente a nossa existência.

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Neste Brasil contemporâneo somos todos - como motoristas - especialistas em roubar a vida de pedestres e ciclistas.


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