quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O cavalo do Spielberg

Roberto DaMatta, O Globo, 01/02/12


Assisti a “Cavalo de guerra”. Havia tempo que eu não tomava parte do estranho ritual de ir ao cinema para participar da exibição mecânica de um drama que independe de quem lhe assiste. Pois diferentemente de outros rituais de desempenho — como as celebrações religiosas, cívicas e teatrais — onde os oficiantes dependem da cumplicidade dos expectadores, no cinema somente a plateia pode atrapalhar-se a si mesma, falando alto ou chegando atrasada. O que não atinge o filme que, indiferente como um meteoro, “passa” transformando fotografias mortas numa narrativa viva.
Invejei Steven Spielberg por ter inventado mais um cavalo para a nossa extensa mitologia equestre. Tínhamos o de Troia; o de batalha (que ocorre todo dia no Brasil); o Trigger, do Roy Rogers, um remoto cowboy; o Silver, o cavalo prateado do Zorro, ex-amigo do Tonto (um índio); e, para terminar uma formidável lista, o cavalo branco de São Jorge que Napoleão, com sua megalomania digna dos presidentes republicanos, tentou roubar. Eis uma modesta mostra de como o cavalo desempenha, ao lado do cachorro, um denso papel na nossa imaginação.
O cavalo detém a força do puro poder e da mobilidade, ao lado de uma contida e disciplinada imponência, ausente nos cães mais indômitos. Mesmo no papel humilde de puxador de um veículo, o cavalo chama atenção pela sua obediência tranquila. Dele é aquele ar bovino, aquele sossego das sujeições serenas: felizes com os seus limites e cientes do seu papel. Mas é dele também o poder de chegar rapidamente a algum destino. Os cavalos permitem voar e alguns são alados…
Ser dono de um cavalo ou montá-lo é sinal claro daquela liberdade igualmente contida da nobreza, como mostra a melhor sociologia do cavalo que li até hoje, a de Câmara Cascudo.
Hoje em dia não temos mais cavalos, diria um leitor cético diante de minhas baboseiras etnológicas. Verdade, mas nas nossas garagens estão centenas de “cavalos de força” devidamente encurralados nos nossos automóveis. Temos centenas de cavalos prontos para galopar sincronizada e perigosamente — em cima dos outros quando nos movemos pra valer!
E continuamos a ter cavalos de guerra que lutam contra ladrões, marginais ou subversivos que infestam nossas cidades mal planejadas e sem fiscalização, que julgamos protegidas por São Jorge, o santo inglês que, como diz Gilberto Freyre, tornou-se popularíssimo no Brasil por ser um santo montado num país de escravos a pé e de aristocratas falsos, preguiçosos e gordos. Mais preocupados — como ocorre até hoje — com suas famílias do que com o seu povo.


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